Este é o prólogo editado da nossa nova campanha de RPG, ambientada no universo das Crônicas de Meliny. Como de costume, a chegada da nova edição de 3DeT pediu uma nova história, agora usando as regras de 3DeT Victory

PRIMEIRO ATO - A QUEDA

Nos céus, a barca celestial noturna deslizava pela noite. 

Lacaedon tique-taqueava no convés, mais irritado do que considerava saudável para alguém com milênios de idade. Há pelo menos oito séculos fazia reparos de manutenção nos mecanismos de vidência da nau, e era terrível algo dar errado justamente hoje em que receberia a Mãe da Noite a bordo.

Atravessou a embarcação de ponta a ponta, deixando para trás o brilho prateado do casco que iluminava o mundo, infiltrando-se nas profundezas onde apenas as trevas completas reinavam.

Aquela era Anul. A segunda barca celestial. O navio voador criado pela deusa das trevas para patrulhar seus domínios na batalha eterna contra Sargan, o Sol Inimigo, flagelo das criaturas da noite. Lacaedon estava à bordo desde então. Foi um dos projetistas, e agora atuava como navegador e imediato do capitão: o lendário Algoz, divindade menor do crepúsculo e filho de Lantaris.

Capitão este, aliás, que não via há mais de cem anos. Ele permanecia recluso em seus aposentos, existindo em melancolia após ter assassinado o próprio irmão gêmeo, Felgoz.

Ignorando os corsários esqueletos que trabalhavam em silêncio, se dirigiu até os aposentos no coração da nave. Ergueu a palma metálica para bater à porta, mas hesitou no último instante.

— Ridículo — pensou, o punho fechado a centímetros da madeira escura. Era impossível não sentir medo. Mesmo sendo um construto arcano e não algo vivo de fato, ser destruído por um rompante de mau humor de Algoz seria patético.

Por fim, bateu. A porta se abriu sozinha, lentamente, rangendo. Sem palavras, tampouco luz alguma. Apenas a treva total e absoluta, densa. Não era necessária nem para ele, tampouco para o líder e mestre. O odor da morte era onipresente.

— Achei que havia dito para não ser importunado, Lacaedon.

— Sinto muito, capitão. Estamos com problemas. Nosso Cristalino, avariado no último confronto, deixou de funcionar.

— Você foi criada para resolver esse tipo de problema. Faça seu trabalho.

— Não há conserto, capitão. Realizei uma série de medidas paliativas, mas ele está perdido agora. Precisa ser substituído. O que nos leva até outro problema: não há mais magos capazes de criar um Cristalino nos dias de hoje.

— Maldito Donaire — reclamou Algoz, enfim abandonando a poltrona e o vinho, levantando-se do lugar onde permaneceu introspectivo pelas últimas décadas. Tinha o dobro da altura de Lacaedon — que já era um construto com quase quatro metros de altura — com a pele de um negro absoluto, idêntico à mãe. Diferente dela, porém, seus olhos queimavam em brasa. Herança do pai.

— Lantaris explicou o que virá fazer aqui?

— Os emissários não sabiam.

— É claro que não — suspirou Algoz, dirigindo-se até a adega, servindo-se de mais daquela misteriosa bebida que jamais se esgotava. — Há como esperar?

— Não — explicou Lacaedon. — Sem o Cristalino, não podemos controlar Anul. Ela seguirá à deriva pelo céu até colidir com Phaélius.

— Foi a última batalha contra Phaélius que prejudicou nosso cristalino, certo? Então está tudo resolvido. Vamos tomar o artefato deles para nós.

— Não há tempo, capitão. Lantaris chegará até nós em três horas, pontualmente à meia-noite. E de qualquer forma, não poderíamos manobrar.

— Não precisamos levar a barca inteira até lá. Você irá sozinho.

 

 

Lacaedon, 35pt

P6, H6, R6; 6PA, 75PM, 35PV
Perícias: Máquinas, Mística, Percepção.
Vantagens: Ciborgue; Ilusão, Imitar, Imortal, +Mana IV, Magia, Patrono, Regeneração II.
Desvantagens: Infame, Ponto Fraco.

Imaginado para projetar, construir e posteriomente manter a nau celestial Anul, Lacaedon é um golem arcano milenar. Foi animado pelo poder divino de Lantaris para servir seu filho, Algoz. O que tem feito ao longo de toda sua existência.

Lacaedon é um mestre na criação de ilusões sombrias, utilizando sombras e contornos para enganar seus raros adversários. Também é adepto da reengenharia contínua (que muitos rotulam como gambiarra). Ele reluta em trocar peças (seja em si mesmo, seja em Anul) enquanto for possível consertá-las. Seu único real desafeto é sua contraparte gêmea, Larsan. O irritante rival que cumpre a mesmíssima função na embarcação inimiga.

Lacaedon imaginou que um mortal suspiraria frente à sentença do capitão, mas não tinha esta função em seu corpo autômato. Todavia, diante daquela presença e frente a uma ordem tão absurda, a alma ou essência reagiria da mesma forma, independente de raça ou constituição.

— Induzo que sugeris minha invasão antes da colisão inevitável? Tomo o artefato, volto; após a instalação, manobramos de maneira a evitar o confronto. Em… menos de três horas.

— Exatamente — pontuou Algoz, voltando ao seu lugar de contemplação. — Feche a porta quando sair.

Não havia tempo hábil. Porém, também não havia escolha. Teria que descobrir uma maneira de realizar aquele pequeno milagre. Pensar e calcular era seu forte. Fazer coisas impensáveis com cálculos improváveis, seu fraco.

— Maldição — fechou a porta e voltou a caminhar pelo barco, olhando para os lados em desespero ansioso. Tudo o que teria de fazer era trocar os Cristalinos. Rumou até a área interna de acesso ao Cristalino de Anul. Tamborilou o sistema de manutenção, pensando. Não havia tempo. Tinha de ser do jeito bruto.

Acessou a escotilha para retirar a peça por dentro. A partir dela, rumaria até Phaélius, antecipando a rota de colisão. Calculou o caminho mais rápido e provável usando magia sombria, deformando suas costas na forma de asas de energia escura. Saltou, estendendo as longas asas negras, deixando o vento soprar por entre as penas escuras, feitas de energia arcana. 

Àquela hora, Phaélius havia recém ancorado próxima ao horizonte, aguardando pelo momento em que regressaria até os céus, enchendo o mundo de luz quente e desconfortável.  Ele, claro, não poderia esperar até o amanhecer. Precisava ser muito mais rápido que isso. 

Neste prólogo, o jogador controlou um NPC importante do universo de Meliny, com uma pontuação bem maior do que os demais para sentir o gostinho de como seria estar bem adiante na campanha. Lacaedon usou +Magia para conjurar Voo. E pedi um teste de Mística para ver o quão rápido ele chegaria até o alvo. 

Infelizmente, mesmo gastando 1PA, a jogada total foi de apenas 15. Um resultado ótimo para personagens iniciantes, mas nada em se tratando de um ser superior como Lacaedon. 

Apesar da pressa em resolver tudo o quanto antes, Lacaidon não conseguiu tirar o melhor proveito das asas mágicas que conjurou. Não devido ao frio mortal que cobria aquela parte do mundo, tampouco por temer quem ou o que encontraria a bordo de Phaélius. O que o atrasava era o desencanto por saber que aquele Cristalino era o último que havia, e que provavelmente jamais existiria outro.

— O mundo está em decadência. A magia enfraquece, e até os velhos artefatos do passado foram corroídos pelo tempo — disse para ninguém — Algoz está certo em sentir-se mal. Sobrevivemos para assistir os últimos dias.

Decadente ou não, Endara era imensa. Lacaidon atravessou os continentes, voou para além das ilhas, cruzou o maior dos mares. Sempre junto com a escuridão. E quando alcançou a barca celeste inimiga, o fez pouco antes da alvorada, justamente quando o céu está em seu momento mais escuro. E lá, sob a luz quente e desconfortável, brilhava Phaélius.

Sabia que o navio estava se preparando para partir. E que sem dúvida haviam inúmeros servos do Deus Sol lá dentro. Restava encontrar uma maneira de adentrar a estrutura até seu interior onde repousava o Cristalino.

Por fora, Phaélius era muito semelhante à Anul. Imaginava que sua construção interna também fosse parecida, mas não havia como saber o quanto os irresponsáveis e inconsequentes servos da Luz pudessem ter mexido no projeto original. Obviamente, seus cuidados seriam muito inferiores aos que ele próprio havia tido com sua nau. Porém, teria tempo para praguejar contra eles em outra oportunidade. Por hora, precisava concentrar-se na missão.

Como aquela era sua única pista, seguiria com este plano. O Cristalino ficaria na proa, mas a única entrada para os níveis inferiores estaria na popa. Próxima demais aos aposentos do capitão. Felgoz estava morto, então não seria problema. E imaginava que nenhum dos servos do navio apresentassem algum perigo real contra ele, exceto por seu duplo: Larsan. Evitá-lo seria o ideal.

Não era difícil de encontrar algum daqueles vagando pelo convés. Eram elfos das areias, criaturas comuns nos desertos que se formavam em volta do ancoradouro de Phaélius. Em vez de corpos delicados e feições gentis, pareciam-se muito mais com piratas. Vestiam-se com roupas brancas e douradas, usando turbantes e lenços sobre o rosto. Imitá-los seria simples. E todos aqueles véus e tecidos ajudariam a disfarçar a peça defeituosa oculta pelos trajes.

A massa mística que o cobria moldou-o a imagem similar a dos servos da náu de luz maldita. Agora, precisava entender o caminho mais curto, rápido e discreto até a proa onde o cristalino deles deveria estar. Começou supondo que os caminhos do navio seriam os mesmos que os seus. Tinha de agir. Não havia tempo.

Novo teste, desta vez o jogador tentou compreender a estrutura da nave e misturar-se aos servos de Sargan para chegar até o Cristalino. Ele passou fácil num teste de Máquinas beneficiado por outro PA, mas pedi para chegar Percepção também. E ai os dados fizeram sua mágica.

Com uma jogada baixa assim, não havia como o personagem perceber muita coisa. A aventura continuou normalmente, mas a maior parte dos mistérios acabaram ficando por conta das especulações dos jogadores nas conversas posteriores.

Conforme Lacaedon imaginou, o interior da barca inimiga era semelhante àquela em que existiu ao longo de milênios. Seus serviçais, criaturas feitas de areia e luz, eram também muito semelhantes aos servos de sombras e ossos que realizavam as pequenas manutenções e trabalhos no interior de Anul. Parecidos até demais.

Atravessou o convés, infiltrando-se ao lado da cabine fechada de Felgoz, irmão de Algoz. Estava vazia desde que o timoneiro do sol pereceu sob a ira do seu capitão. Inimigos da aurora até o crepúsculo da existência. Além dele, os depósitos de armas, com canhões, mosquetes, espadas e bacamartes. Assim como eles, preparavam-se para a última batalha daquela guerra. O combate que decidiria de uma vez quem dominaria os céus de Endara.

Estranhamente, mesmo após tantos combates e um armistício tão longo, ele jamais havia pisado na nau inimiga. Aquela missão de infiltração era inédita. E só uma coisa estava entre ele e o objetivo: Larsan, seu gêmeo oposto. Nunca duvidou ser mais talentoso e completo que ele. Mas, sendo sincero com suas próprias peças, não lhe agradava a ideia de agir sorrateiramente daquela forma. Não havia escolha. Sem o Cristalino para manobrar o navio, seriam um alvo fácil.

Abriu o último portão e adentrou a sala onde o aparato repousava sobre um manto fervente. E ao lado, alguém que jamais imaginou encontrar.

— Não é possível! — disse, antes de ser atingido pelo calor de mil sóis.

Depois disso, apenas sombra.